Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Se alguém perguntar, sussura-me ao ouvido, o teu silêncio é tudo o que me apetece puvir no barulho do mundo, não consigo perceber mais, nem quero perceber mais, enquanto o mundo roda, enquanto as cidades se fazem e os muros do mundo caem, simplesmente não percebo o agora, o espaço que nos crcunda, as mesas onde nos sentamos à vez, as cadeiras que não nos cruzam e a cegueira que nos circunda, não consigo perceber mais.

Simplesmente, nada. Que significa uma fotografia se apenas uma existe para recordar... Diz-me o teu nome que eu digo o meu, atraves-te a tentar saltar se prometer que seguro, atraves-te a ir se pedir duas vezes...

Por uma noite dás-me o mundo, dançarias a chuva se a luz fosse dos dois, viverias duas vidas se uma não te bastasse, se parasse o tempo sorririas para sempre?

E se ainda restam dúvidas, se ainda nos quebra o tempo, posso escrever três vezes...

"  Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como urna caverna em terra de supersticiosos e o nosso senti-la era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza rectângula da vida... Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
      E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...
      Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
  A nossa vida era toda a vida.., Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
      Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
      Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
      E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira."
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego