Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

St. James

Na enfermaria onde repouso há um branco em toda a parte, as paredes são brancas, as camas metálicas mas brancas, os lençóis pálidos e as pessoas plastificadas, não há nada de luz neste branco, apenas vazio, uma busca incessante nas imagens brancas por algo que nos nutra de sentimento, algo profano que nos corrompa e nos faça ser homens, mais que animais. Nesta ala não há mais pacientes, não subsistem gritos nem mordaças, não há camas partidas nem lençóis desfeitos, tudo está na mesmíssima precisa distância apocalíptica que criou o humano, perfeito, inteiro, branco, único, limpo, sem sinal de vida, sem subsistência de morte.
Ao fundo, perto das janelas que revestem toda a parede e dão para sítio nenhum, que não reflectem as árvores da rua, nem os pássaros dos campos, só branco, sem luz, pálido, há um piano de cauda, um tradicional hollywodesco piano, em silêncio. Toca a primeira nota, e silêncio, e a escala vem, resplandece tudo de vida e cala. Silêncio. Renova, volta, vem, nasce de novo e numa exígua perspicácia mantém-se perene no som, e cria ritmo, e faz vida e faz sentido, e sem nada transparecer nasce.
Saio da cama, não me calço, não me visto, sigo. Ao ritmo da melodia, ao som dos acordes, sentindo toda uma nova fragrância a queimar-me o corpo e a impelir-me ao movimento, crio passos, não os dou, crio, mais pesados, mais compassados. Silêncio e tudo para.
Se eu me ficar por aqui, deixei-me com o piano, talvez um dia ele toque alto e eu volte para acabar o que nunca ganhou começo.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Fragmargens II

Não me quero destruir, não me quero olhar, quero acabar longe, num sítio só meu, onde possa ver o mar, onde possa plantar árvores e vê-las crescer, onde possa dizer que não tenha paz e onde possa pedir mais, onde há bancos de madeira vazios e mares por provar, onde a areia queima nos pés, cortando-os em pequenos golpes sem dor, onde se construam cidades pelos rios e barcos com as marés, onde possa ir, sem nunca voltar, sem nunca me  deixar.  Ser folha branca para todas as tintas do mundo, sensação para todos os ventos, corpo para todas as facas e pensamento para todos os ignorantes, só mais uma vez, só esta vez.
Onde passa o frio, onde jogo comigo, onde me tenho para me sentir bem, onde o calor passa pela manhã e a lua cai de tarde, onde penso em ti, sem dor, sem sentimento, só pensar como criança inocente a brincar ao faz de conta.
Quero é ver, sentir, provar, ir, ser , liberdade, criar margens.
Ser à margem do mundo, a margem de mim mesmo.

Deixar para trás

Esconder, guardar, deixar, queimar, ficou a noite rendida, uma janela para o rio e um monte no longe, o vento está mais frio e a noite mais barulhenta, tu olhas-me com ar sério, uma carta rendida e um vazio a esperar, uma letra apagada e um beijo roubado, um toque que se desmancha e uma memória que renasce, uma festa que se ganha, uma pedra que cai, uma fuga no campo, um rio que bate e uma rocha que não cede, um bafo quente e um olhar perdido, não és tu, não somos nós que nos perdemos, só os outros não nos encontram, o cenário manda dançar, a noite faz lembrar, tu não és nada, a madrugada vem, os carros apitam e a gente olha, vejo os teus traços, os meus lábios, acabo em ti, nasces de nós, tenta parar, o corpo não deixa, a boca não morde, as mãos não largam, a noite aquece, o vento foge, as ervas crescem, e nós perdemos, nós esquecemos, nós somos, nós estamos, nós não existimos, vês?, estás só!

Quimera

Tropeço em mim e passo por Lisboa. Cresce em cada caso uma milagrosa magia de desprezo, de desconfiança e nojo, somos nós a morrermos sós. Se me bateres à porta, hoje, direi que não, não quero ilusões, nem transtornos aos olhos, se vieres direi que não, se um dia nos virmos sorrirei com gosto como quem passa por um oásis em pleno deserto, até lá nego. Nego querer, nego ser, nego tudo e nego-me ao silêncio.
Há nesta rua demasiada gente a passar, gente de negócios bem vestida, artistas descambidos e personalidades exuberantes, não há som contudo. Chove e não oiço nada. Não bate em terra a água pura do céu, não salpica os olhos, não limpa a alma apenas passa por nós como a noite, não fica, não deixa, vem e parte como tudo o resto. Ouve a chuva na terra molhada, não aqui, longe, rasga a luz em som e talvez me oiças a dizer adeus.
Quando a chuva vem de noite e ninguém bate à porta, não salto da cama, nem me aparto nela, sinto-me num limbo de quem não é, não é sossego, nem é esperança, não sente, nem dói, subsiste.
Quando a noite passa e a madrugada vem, quimeras são as que ladrão pelos terrenos lamacentos deste bairro, porque vivo?, ironicamente passam outros.
Quando bateres à porta nego que te abra,
Não te garanto que esteja fechada.