Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Escreve-me

Um dia, se o tempo te abraçar, escreve-me uma carta, nua, sem letras, deixa os teus lábios florear por lá até secar, transpira a alma para uma folha branca e deixa-a ir como havias feito, fácil e sem sentir, gritando do corpo o que já não sentes, a vida que deixaste escapar. Com a calma plácida dos gregos, flui como um rio pelos veios do papel, sente os sucalcos, flutua, faz-te chegar ao fim do tempo.

Não precisas de conversas, nem gestos, não te mostres, sei de cor o papel da tua mente, a roupa que trazes e o cheiro que deixas pelos campos, sei como danças e como perdes o equilíbrio ao trocares os tempos do tempo, aquele cambalear sôfrego e corajoso, lembro-me de quando bebes e tragas com os lábios secos a vida dos outros, ainda me lembro de bastante.

Escreve-me porque eu perdi a minha letra, deixa-a contigo um dia no tempo. Quando pensava que bastava ver no bolso roto do casaco, ultrapassando o frio da rua e a chuva de maio, não bastou, estava vazio como sempre esteve desde a última vez que me escrevi.

Agora sem letra, escreve-me e lembra-me de quem sou comigo. Depois parte novamente.

A tinta percorre-te. Eu deixo-me contigo e vou para o futuro.
Lá escrevemos com o corpo.