Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Noite IV

Sigo sozinho nos desertos do meu carro, profanando a cada curva os segredos intrínsecos da memória do teu corpo, circundo os sítios populosos e chego à solidão da terra. Confuso e abstracto, que tenha eu frieiras se as multas que me chegam são muito menos do que as que passam, tenho eu arranhões na alma, riscadas pelas tuas unhas cravadas em agonias lentas.
Como dizia uma criada que mal sabia ler, o meu momento é o presente, vou para a cama estou doente. Estou longe dela, de tudo, junto do silêncio e deste nuvem de fumo que começa a embaciar as janelas do carro, já ninguém me vê lá dentro.
Tira tudo, perde-te, não sei ler também, deixei na cidade o que me põe doente.
Não há ninguém aqui. Ninguém aqui fica, tudo o que vem passa porque eu não aprendi a fechar portas, só a abrir fechas por onde usurpa o espaço, Não te quero. Quero-te. Não sei que mais querer senão uma beata de cigarro a escorrer me no braço, queimando lentamente o seu caminho até numa volúpia escarlate desafiar a gravidade a pequenos soluços e atravessar um chão que não se deixa trespassar.
Um bafo mais quente e uns faróis que passam, nem a luz aqui se deixa prender.
Não há espaço nos bancos para que cries margens, nem tempo para te deixares ir. Vivo do que me dão, até não viver mais e ter que procurar ódio nos olhos de outro alguém.
Saio dele, o vento bate frio, o cigarro ressente-se e a alma apaga-se, os pequenos toques no vento ao passo ritmado da dança do casaco lembram-me de ti, um dos 'ti' que por aqui passou, não estás, eu não quero, eu quero. Deixas-te passar como este vento também passa, como as ervas também voam e como os pássaros se vão esconder nos recônditos caminhos de deus. Viver do que nos dão é tão menos do que viver com o que se quer.
Acende-se o último e já não sei ler, a porta ficou aberta e eu persigo a chapa das restantes, queimando a mão no frio ardente que ali vivia, ou apenas passava, chego ao fim dele e continuo, Olho de relance para trás, vejo, no vidro pálido vejo, na chapa iluminada pela brisa, vejo, no pequeno traço espelhado da marca, vejo, e só me vejo a mim,
Continuo, uma lágrima caí e mais um bafo se enche, o corpo contorce-se mas não para, a alma dói mas não se vai, todo os meus olhos se fixam naquela imagem e no fumo que agora a cobre,
Porque me traíste tanto?
e eu não consegui responder

domingo, 17 de novembro de 2013

Sentares-te à mesa torna-se de tal modo uma rotina que dispares os olhos não observam com a devida tenacidade as margens obtusas do que os circundam, as pequenas sombras sobre a mesa, a posição errónea dos talheres, o pequeno folho onde assentava a panela, tradição, as crianças rugindo animosidade às voltas da mesa como uma plateia de circo, os traços campestres trazidos da cozinha, numa marinada de calor e desejo que acendiam a animosidade em nós, o desejo carnal de morder, perder nos sentidos da boca os doces travos da conquista. Saborear com a parcimónia devida os pequenos contrastantes, o alecrim, o louro, lamber o sal com sentido, morder com os olhos o mundo e tomar a fome como eterna.
Levanto a cabeça do prato que se pousa defronte e nada. Nem o trapo velho que lá costuma estar, nem os talheres compostos, nada. Silêncio, um absurdo de vazio conquistou este espaço, um vago néscio tempo de distância imprecisa, de desfasamento real, uma curva abstracta para dentro de nós, uma contorção anímica que nos estrangula.Perdemos pela passagem, aos soluços amargos, as pequenas surpresas, que sem sabermos, constituem as grandes imagens, delas se fazem livros e delas se fizeram pirâmides. Delas vem a força e dela nascem heróis.
À mesa o silêncio,
Façamos barulho enquanto tivermos voz.

Molière

Estou sentado nas abordagens recônditas do palco, longe dos olhos bifurcados na escuridão, da svozes quentes e do bafo dos aplausos ecoando pelas miragens de ouro, únicos restos da magnífico, onde procura o público, a dor, a garra, ainda não estou lá.
Não te sentes aqui, não agora, pinto-me os traços por baixo das rugas marcadas pelo desgaste, desgosto, pelos lados que me perderam e pelos sonhos que me deixaram, por todos os silêncios que não cumpri e por todas as palavras que não direi, aqui, antes, no prólogo de tudo, espera-se por algo, algo onde nunca estive, um tempo em que nunca me perdi, não tu.
Não quero sentir o teu bater, não perto de mim, fecho a porta e tu andas pela amdeira, como na primeira vez, e sei que aqui algures, num bau, está a resposta. Porque eu não sou deste palco nem tu desta história, quando me procurares nele saberás que farei tudo para lá não estar, caminhamos para algo, maior que nós, e lá, no fim, acabaremos de mãos dadas e costas voltadas ao tempo, eternos amantes ao luar.
No fim do espelho, no intrínseco sono dos meus olhos, há uma pequena lágrima seca, há espera de ser chorada, não hoje,
Visto-me e saio do camarim, pronto, penteado, com pó de sobejo, com a pouca humanidade guardada no bolso,
Saio ao palco, na rua há demasiada desumanidade e esta plateia está vazia,
Na tua ausência o vazio vira horizonte.