Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O mundo continua

Não sabe nada da noite, nem dos mistérios ocultos da metafísica, desconheço o tempo e a ausência, conhece os campos e as cores, a tonalidade mais cinzenta da chuva e as pequenas gotas que beijam o chão nas manhãs menos enxutas. Ficou sempre de fora das cidades do mundo, na sua terra, o seu mundo de um hectare, se tanto, se muito, não sabe de palavras robustas mas de braços fortes, desconhece os sons da arte mas sabe os da natureza.

Fecho a porta e sei que não volto, escondo as cortinas e sei que elas não se abrem mais.

Viste nos tempos o que muitos só vêem nos livros, caíram palavras e regimes, nasceram países e quebraram-se mundos, arderam terras e choveram mortes, e apenas sabes das chuvas, apenas sabes dos ventos, só sabes do teu mundo, porque só ele te disse respeito.

E é injusto!

"O Mundo é tão bonito e tenho tanta pena de te perder... Porque o mundo continua sem mim... e sem ti." - José Saramago

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um lado

Demasiado alto nas montanhas, onde o sorriso se esconde nos arbustos do obscuro, onde não estamos prontos para ficar, onde parar é cair e o eclipse a noite, o não ver, o estar a cair aos poucos, cedendo em cada frincha um pouco de nós, um corte, mais profundo, ainda mais, as memórias afundam-se, o sangue escorre.
Lamentar, um lado só não lamenta, um olho só não vê, não aos deuses, nem aos mortais, compassadamente, numa ligeira brisa de quem se deixa levar, a noite treme, as memórias vão-se e não estamos prontos a subir, não ficamos por aqui, parar é cair, ficar é partir.
Enquanto não se voa e não se desiste, não se foge sem rasto, não se chora sem lágrima.
Não se fica, não se parte,

O esquecimento global I

Se sentes o corpo a soluçar, nas vagens mais impuras do tempo, levando a nicotina espalhada pelo corpo nos tecidos vazios da memórias, apagando a cada bafo mais hirto as verdades mais certas, mais nubladas, que as bocas não contam, que o corpo não esconde, se sentes lá fora a chuva, um novo toque, leve, descobrindo nos resquícios de cada gota as laminas impenetráveis das tuas unhas, os contronos suaves dos lábios e as naves perdidas do rostos que se queimam, numa tempestade de areia, num risco de teimosias sem precedentes, fica com o desejo eu cumpro o que não disse, muito mais do que se falou, não houve silêncio que ficasse, nem palavra que se escondesse.

Penso às vezes que se safa no final do dia, quem é que passa pelos cabos tumultuosos da vida e se ingere a si próprio em leitos profundas de regojizo, não é a pessoa mais inteligente, nem a mais bonita, não é a mais rápida nem sequer a mais astuta. Fala-se em adaptação, uma mutação constante com o passar do tempo, adaptação ao vento mais forte, à carne mais crua, passar sem comer ou ter que dilacerar os corpos inertes deixados ao abrigo do tempo para sobreviver. No fim é deixar ao acaso do esquecimento o que sempre nos recorremos nas lembranças, deitar ao fascínio as despreocupações largas do dia-a-dia, deixando se levar na corrente da sobrevivência, na ternura dos que se plastificam nas circunstâncias.

No fim o que conta não é a sobrevivência, não é a persistência duradoura no tempo, omisso de gente, omisso de alma quente que embale nas insónias, é a marca que se deixa quando se passa, a memória que fica no que resta, na cabeça dos tolos, na memória dos sábios, é aquilo que se põe no único momento em que se pode, é o que se deixa como os últimos que se vão.