Por baixo da chuva, cabisbaixos com o medíocore receio de nos molharmos, como gente civilizada e enxuta, seca por completo, num misto sem sabor de ataraxia pura, um suspenso oco, quiçá delirante, que nos impela para a frente, sem sentido, sem vagar, sem força. Não temos casa. Não temos gente. Não temos mais nada senão a chuva que nos reveste de vazio, que rompe a solidão com o mundo e nos afasta dos demais.
Em círculos estritos, ando pelo passeio, à espera que um chapéu se cruze com o meu, não mais que isso, um simples desejo infantil de ver desenhado um sorriso em cada um dos chapéus, um lapso futurista de sentir neles a alma de quem os carrega. Um sorri com a força do sucesso, enumerando vértices vertiginosos de pura pujança, uma verdadeira luz sobre o céu negro e as luzes foscas. Outro produz lágrimas a um ritmo superior ao da chuva, triste, vazio, perdeu-se no sentido da sua existência, poderá um chapéu de chuva ter a eternidade do vento?, Serei eu um pequeno gesto no meio de tantos mais, sirvo para salvar da chuva, não rio, não paro, não vejo o sol, não sinto a terra molhada enquanto chove, nunca conseguirei sentir o cheiro das mãos sujas na terra molhada enquanto chove, não poderei nunca ter em mim a sensação de sentir mais que isto.
E uma lágrima caiu, não era chuva, eu senti o peso daquela lágrima a escorrer lentamente pelo azul campestre daquele chapéu, carregando de peso cada haste por onde passava, circundando os pequenos rastos de chuva que furiosos tentavam penetrar do manto de salvamento, eu senti, e talvez por ter sentido, despertei da inércia incandescente que me possuía desde os primórdios, reacendeu-se em mim aquele ardente desejo de gritar, de quebrar a civilização, de romper com os preceitos franzinos que nos prendem às garras da não-loucura. Não partir pratos, não levantar a voz, sorrir educadamente às pessoas que passam, não disparar alarmes sem ver o incêndio ao alto, ser civilizado de gravata, E outra lágrima caiu, de sentar à mesa e usar talheres colocados a três quartos, usar fato, não quebrar silêncios nem ousar sentimentos.
A chuva pesou ainda mais pois naquele momento soube que ela não era quem me prendia ao chão, apenas eu consigo deixar no chão os sonhos, enquanto cabisbaixo espero que alguém os levante por mim, apenas eu posso prender no cimento a alma do presente, caindo no esquecimento mórbido de um futuro em sargaço. Do chapéu pendeu uma terceira lágrima, a última...
Do meio da gente endurecida, baixei o chapéu, senti então em mim a vida toda do mundo, os calafrios da realidade por cada poro da minha pele, um cataclismo desassossegado que me tornou gente, Corri.
Empurrei gente, gritei ao vento que era Livre, saudei gente que queria ser saudade, não mais, tirei a gravata num sopro de movimentos cambaleantes mas hirtos, corri para a terra.
Deitei-me e coloquei o chapéu aberto deitado comigo e os dois ficamos ali, presenteados de chuva, sentindo a realidade toda na terra que nos sustém,
e com o olhar no céu sabemos que nele residirá sempre o futuro que nos resta, infinito.