Apartam-me os olhos para longe, mais um dia que se perdeu, fecho o baralho e guardo-o no bolso, não quero ver que tudo é maior aqui quando estás, não quero ver o sol que transpira de chuva por todas as nuvens que me pairam, o tempo passa e eu fugi. Aqui está frio demais para mim. O tempo dos silêncios ficou longe, onde se guardam as pequenas memórias, numa pequena caixa de segredos guardada num sótão.
Não sei largar mas também não sei dizer mais. Rasga esta escuridão latente em mim, abre tudo o que é nosso e deixa brilhar.
Tudo o que é meu, não sei largar, não sei perder, quero continuar eternamente à chuva a jogar, lavado na água, transpirando dor, o último a cair não vai perder, o último a cair não vai sentir.
Aqui, longe, há um espaço enorme à tua espera, basta vires jogar.
Há um dia em que todos os homens lutam, em que se enchem de sangue nos olhos e se revoltam pela humanidade que se perdeu. Há nesse dia uma nova raça que se ergue, sabendo que perdeu no tempo toda a razão de existir, deixou na margem todas as formas de luar. É o tempo dos chacais, onde espreita na noite a maldade, a injúria e um nojo de tudo, apenas tudo, desta escravidão reles que nos prende às coisas sem passar. É o tempo da ameaça, onde os homens se fazem deuses ou poetas, deuses altivos, morbidamente cansados e estupidamente poderosos, poetas tristes, sós, pelas multidões apagadas esperando por uma luz que só deles pode vir.
Esta é a noite em que os homens se transformam.
Este é o futuro daqueles que não choram.
"Nós somos, existimos" em cada pequena gota que escorre pelo corrimão e em cada mão que procura outra, no momento em que o olhar se cruza e o coração bate mais forte, existimos, onde nas ruas criamos o silêncio das coisas e nas fontes a água que vem na nascente, existimos, pelos comboios que perdemos e risos que soltámos, nas violentas horas que nos perdemos e nos suspiros juntos que partilhámos, nós somos, existimos.