Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Assim

O sol nasceu cedo, em terras mais longínquas o sol nasce sempre cedo e obliquo aos nossos olhos tortos de vida, entrou pelo corpo aquecendo devagar como um toque  suave surrupeando cada poro vazio, cada esperança vã, um labirinto de gente que se constrói num corpo só. Vestiu-se e saiu. O tempo estava ameno, nem próprio do sítio, nem cómodo para a gente. Suspendo o tempo porque o relógio não o havia trazido, andou pelas ruas, entrou num metro sujo e amarelo, velho, ressequido como as veias do comunismo, onde os bancos são assentos rotos, escuros, próprios de quem vai sem voltar.
Chegado ao jardim, viu em si um novo ser. Perdido naquelas árvores verdes, naqueles silêncios harmoniosos e pelos cheiros do tempo surpreendeu-se ao sentir, ao aperceber-se que tarde demais era apenas escolher, não é tarde. É cedo nas multidões.
Correu, sem parar, sem olhar para trás e enquanto correr era tudo o que lhe ficava proscrito, deliciou-se no vento o rasto do perfume, viu no vento os lábios vermelhos que empalideciam o rosto sorridente, de tez calma e mão trémula que lhe suscitava na memória um reconforto estranho de quem parte sem nunca ir, de quem fica sem nunca esquecer, um complemento estranho de quem não se completa nunca.
Perto do fim abriam-se em triângulo campos vermelhos de lembranças, oferecidos por quem ali estivera em tempos antigos, cada casal embriagava-se de solidão e deixava ali um pequeno passo para que os próximos pudessem andar. Ali, perto do fim, onde se erguia já os edifícios da civilização e os barulhos dos homens loucos do futuro, ele viu-a. Em pequenos passos incertos mas fixos, com uma estranha tendência de por mais pé do que era preciso, tecendo em redor das solas um pó próprio das cidades do tempo novo, que se asfixiam em pó para se poderem embriagar em dinheiros e luxos que tais.
Quando se aproximou teceu um leve toque no ombro esquerdo daquele vestido, entre os dois triângulos onde pautava Matisse, desenharam de longe um círculo infindável, um pequeno espaço uno, uma pequena solidão que, ali, naquele momento, se fundiu nos corpos e se fez no tempo.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Pequenos Inquietamente Frágeis

Algures longe de tudo reside um pequeno boneco de porcelana, em terras onde o sol brilha, onde o mar nasce perto e reside connosco pelos caminhos obtusos dos campos virgens e verdes, recheados de árvores e singelos bancos silenciosos onde residem pensadores de alma e filósofos do corpo. Longe de tudo há um imenso vazio de gente e uma multidão rouca e ouvidos surdos à nossa voz, aqueles cuja boca desenhada pelo contorno liso de um pincel se residem à lingua de Pessoa, aos gestos de Eça e ao criticismo amargo de Sena, a saudade do mar de Sophia, o revolucionismo esfuzeante de Ary e a rouquidão crítica de quem na chuva faz perólas sem água de Mourão-Ferreira.
De luzes e ouro se murmuram países, não deixemos a sorte com as audazes nem o silêncio para as almas penadas. Pergunta o pequeno boneco se de longe cair, alguém de perto o apanhará, com mãos suaves como aquelas que o fizeram a rir, as que contornaram um pequeno chapéu azul na sua cabeça, as mesmas mãos que lhe afagaram as lágrimas na noite.
A noite vem e traz consigo a escuridão de breu e todos os monstrengos que residem em cada um, nos resquícios de cada alma, escondido por entre portas, um figurão negro, alto, espantoso, sem uma réstea de luz ou uma imaginação dócil, sem um bom trato ou um coração saudoso. Importa esquecer, trata de lembrar que há-de passar, passar o tempo sobreerguido no vento, vendo as aves de longe, sem parar, tentar matar com porquês o que sobre de confiança, A noite é vil. Por ela, ficarás com a chuva dos dias e o frio dos desertos, com os buracos no mundo e os poços de terror, em todas as prisões mais negras, sem saber de quem, sem saber onde, sem saber, só.
Numa noite de chuva que não nesta, num país que não este, o pequeno boneco subiu à sua janela, viu uma lua tapada de lágrimas, chorando para a relva encharcada e de tez triste, rebaixada com o tempo, ele não chorou, chorar não sabe, escutou o silêncio, sentiu-se sombra de todas as sombras e uma pequena mão tocou-lhe no ombro e eternamente se viu caindo, sem nunca tocar o chão, sem nunca findar a noite, suspenso de tudo.
Viver é tão mais que estar e tão pouco lhe chega respirar.
Pudéssemos quedar juntos no mundo e ele seria a nossa casa.

domingo, 30 de junho de 2013

Distância

Enquanto o vento bate forte nos olhos, lavados em lágrimas, onde o tempo passa lento, rasgado como um ventre novo, sentimos aquele arrepio que só se sente longe, que só se sente ausente, que só se sente só. Podemos estar longe no tempo quando perdemos o momento de tornar eterna a vida num segundo. Podemos estar longe na distância, sabendo que as nossas lágrimas são uníssonas com as de quem nos quer. Perdemos a casa porque somos do mundo e ele não nos chega por ser grande demais, e ele não nos basta porque não o podemos agarrar, sentir, abraçar, tornar nosso aquele corpo, possuir de afectos até cessar o tempo.
Com um pouco de engenho podemos inventar formas de queimar a chama da saudade, latente, até que de novo nos vejamos.
Porque só quero que se retorne na memória que vos quero bem, que vos gosto, muito, sempre, meus.

Te voglio bene assai
Ma tanto tanto bene sai

Fica no sangue o peso de ser português e de não estar em casa em sítio algum que não o nosso, com quem queremos bem, com quem nos quer bem.