Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Piano Bar

Os dedos deslizam no xadrez mais rápido do que um jornalista e mais ritmado que um pintos, há segredos em cada tecla e sons em cada toque, circunda-se do piano a animação do costume. O velho que perdeu a inocência nos tempos da guerra e se lhe viu desprovido de vida nos tempos de quem já não manda, onde as roupas já ganham espaço e onde as rugas marcam cada bala que o percorreu. Ele pede um som calmo, que nos embale enquanto o tempo nos dá um pouco de si. O tipo do bar, amigo de todos, oferece uma rodada, sempre disponível para dar mais um copo ou acender um cigarro, Acredito em anjos e tu?, de certeza que ele podia ser uma grande estrela se antes de tudo acreditasse nos homens e no seu poder transformador. Aquela lá do fundo está sozinha, todas as noites, um whisky e um cigarro, um banco e um espaço, praticando políticas consigo mesma, apenas no silêncio. Raramente noto, balança a cadeira enquanto canto, entoando cada nota nos modos do seu corpo, entoando no seu ar aquilo que eu digo com notas, e dedos e teclas, nada mais artificial. Toco rápido. Alto. Canta algo, afinal estás ao piano e nesta noite precisamos de conseguir acordar com ela na memória de manhã. Os negócios passam na bebida, afinal todos a partilhamos. Nada como jazz a um sábado. Nada como partilhar com alguém que não se conhece, embora saibamos de cor, as evaporações do espírito e os suores do corpo. Embora este público seja bom, o gerente me sorria, e todos se tenham esquecido que lá fora a vida, está na hora de largar o fumo dos cigarros, agradecer ao piano e pensar onde vamos todos estar em mais uma temporada. Diz-nos algo maior, quem está no piano, temos todos a disposição para uma melodia, a última. À saída acordamos do tempo e entramos no mundo, sem pianos, sóbrios, prestes a lutar pela sobrevivência. E nada mais e no entanto nos chega para bastante.