Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Era teu

Já te perguntaste se és feliz, disse-me despretensiosamente, como se, sem interesse algum, me atira-se uma bomba de fumo, armada, explodida, dentro do meu próprio corpo que se perde no impacto, sem cair, sem explodir, imploding e absorvendo, Que pergunta, não se o consegue ser, decidi dizer sem qualquer desdém por mim próprio, sem ligar a toda a energia cinética que me enchia as veias de medo, Ser feliz é algo que não existe, está-se feliz, existem momentos felizes, acrescentei.
Sem um segundo de pausa recebo em mãos, Tu não és feliz só por dizer isso, não te deixas ser feliz, tens medo de o puder ser, parei no tempo, ou ele parou em mim não me apercebi da tonalidade desta passagem de tão rápida que foi.
Eu já fui meu, isto não é simples de explicar, mas ao me ver ao espelho sinto-me longe de mim, vejo um ser distante, um reflexo do nada que já fui, um caco ainda construído, embora me lembre sei que a perfeição não está ali, está um ser só, um tudo misto de confusão que se perdeu no tempo nos rasgos de cobardia que com ele vieram.
Algumas vezes a vida passa-nos pela porta das traseiras, não a vemos, deixamos passar, digo ao espelho, Não és o que espero, e peço a mim uma chance de começar de novo, de apagar as últimas estradas onde passei, e voltar a estar só no ponto de partida, sem medo da vida que me preenche, sem medo de construir no escuro, sem medo de mim próprio.
Voltei a olhar para as palavras que recebi, Já fui de mim, não o sou.
Perdido voltei ao espelho, pode ser que me encontre em mim.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Quando te apetecer

Existem dias em que a respiração é mais pesada, onde aquele aperto que já não sentias te volta a abraçar, devagar, intenso, volto a ti e nunca é demasiado tempo. Por muito que se corra na estrada do tempo ainda te sinto aqui, ainda conheço o teu abraço sem toque, a tua mão na minha e, melhor, o teu silêncio a envolver o meu.

Liberta-me e deixa-me ir por aí. Não voltares é dares-me o vazio que preciso de não te ter, o espaço e vácuo para te conseguir sofrer e voltar a enchê-lo de saudade, de mim, não tua.

Pensava que era forte sabes, que ao longo da vida tinha conseguido erguer muros frágeis por aí, aqueles que nos guardam nas noites mais escuras, fortalezas de mim que me deixaram ficar só no meu silêncio, como eu devo estar.

Um dia disseste-me e até agora não me quis lembrar.

Tudo o que preciso está na minha terra, no meu ser, e por muito que me agarres sou eu que me seguro, eu que respiro, eu que sei onde posso ser.

Por isso, por mim, por tudo, quando me apetecer chorar, irei, sou apenas eu a ganhar um espaço para mim, em mim.


quarta-feira, 15 de maio de 2019

Escreve-me

Um dia, se o tempo te abraçar, escreve-me uma carta, nua, sem letras, deixa os teus lábios florear por lá até secar, transpira a alma para uma folha branca e deixa-a ir como havias feito, fácil e sem sentir, gritando do corpo o que já não sentes, a vida que deixaste escapar. Com a calma plácida dos gregos, flui como um rio pelos veios do papel, sente os sucalcos, flutua, faz-te chegar ao fim do tempo.

Não precisas de conversas, nem gestos, não te mostres, sei de cor o papel da tua mente, a roupa que trazes e o cheiro que deixas pelos campos, sei como danças e como perdes o equilíbrio ao trocares os tempos do tempo, aquele cambalear sôfrego e corajoso, lembro-me de quando bebes e tragas com os lábios secos a vida dos outros, ainda me lembro de bastante.

Escreve-me porque eu perdi a minha letra, deixa-a contigo um dia no tempo. Quando pensava que bastava ver no bolso roto do casaco, ultrapassando o frio da rua e a chuva de maio, não bastou, estava vazio como sempre esteve desde a última vez que me escrevi.

Agora sem letra, escreve-me e lembra-me de quem sou comigo. Depois parte novamente.

A tinta percorre-te. Eu deixo-me contigo e vou para o futuro.
Lá escrevemos com o corpo.