O carro continua a andar com destino a casa, passa pelos semáforos sem ver a cor, olho para as nuvens sem ligar à estrada que se encurva à nossa frente, mas ele concorre às leis da física e levemente segue o caminho do alcatrão, deixo-me ir, sem perceber muito bem o movimento das minhas mãos, o toque pesado, agarrado, sofrido, dos dedos ao volante de pele, que sua, que sangra, que sente tudo o que sinto por cada milímetro quadrado de toque. O banco sente o meu corpo enrijecer, cada músculo contrai, cada lágrima cai no assento que me sustenta, cada pingo leva consigo um pouco mais da minha alma que se corrói com o dia a dia destes dias. Vou inerte, gás químico sem expressão, carro rápido sem solução, contorna e vira, acelera e trava com soluços perdidos que ninguém percebe. As pessoas olham para aquele carro preto, não descontrolado, não rápido, apenas inconstante, não cumpre as regras da estrada mas igualmente ninguém ofende, anda apenas, sem grande preocupação de fora, ela está toda por dentro, abarançando, agarrando e suando o corpo que nele habita por enquanto, agarra-o e soluça, sentindo cada toque da sua pele, cada contorno da sua curva, cada milímetro da sua existência. Para quem não quer mais guiar, estranhamente continua seguindo, com medo mas sem grandes receios, sem grandes travões por aí igualmente, mas para quê parar?, mas para quê abrandar?, na verdade o pedal que controla a aceleração não é carregado pelo pé de quem se senta no guiador que gira sem vontade, para quê, pergunto, para quem?, por quem?, e nada se responde. Os olhos vidrados agora olham em frente, fecham, vão dormir, imaginar que não estão ali comigo, que estão longe, além, no meio do mar, numa solidão fresca, calma, natural, lá conseguem ver. A estrada continua, as curvas beijam as retas, intercedem-se sinais, peões e outros carros, mas ela vem outra vez, toca no ombro, relembra de onde estamos, olhos abrem, continuam vidrados, Não!, e fecham.
Estes olhos vão dormir, descansar, partir, imaginar, o carro continuará até algum sinal indicar que a viagem acabou, até alguma mão girar o que a terra ainda não abrandou.
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