Balelas (ou não) da Rua

Nem tanto ao Mar, nem tanto à Terra

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Sorriam

 Aprendemos tanta coisa na jornada e nos dias, queremos contar tanta coisa e viver ainda mais, sonhar e transladar para o real, o toque, o som, o silêncio, o toque é menor do que a vida, aprendemos a ver os perigos das esquinas, os sorrisos tortos na sala, os sinais fechados aos jovens e os beijos guardados para a lua. Fizeram-se braços, abraços e lábios, vozes e murmurios, silêncios, perguntas-me pelo meu caminho e respondo sem som, fico por aqui, neste canto calmo, nesta estrada segura, com as feridas vivas do meu corpo, com os laços presos no meu espírito. 


Aprendemos tanta coisa na jornada, põe-te direito, engole a dor, faz tudo o que tiveres que fizer, sê o mesmo que eras, muda para o que tens que ser, vive, não vivas, guarda, separa e liberta, engana nas aparências, vislumbra os vultos, desaparece e aparece, diz que estás fora ou grita que não saiste de dentro, ama o passado, apaixona-te pelo futuro.


Aprendemos tanta coisa na jornada, ideias, consciência e juventude, deixa-te guardar por deus, culpa-o pela dor, abraça pelo espinho, apesar de fazer tudo o que fizeres, és o mesmo.


Aprendemos tanta coisa na jornada mas quando a câmara aparece e a foto se prepara, sorri como te manda a voz que se esconde no obturador, sorri com os lábios, os olhos, esses, podem abraçar as lágrimas que ainda não podem sair.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Quando for (Quero ir assim)

 Deito-me no sofá, sem cobertor, sofrendo um pouco do frio nas mãos e no nariz, a minha respiração é mais pesada, como se pó tivesse mudado para os meus pulmões e lá fizesse casa, cidade e campo. A respiração pesa, cada bafo singelo de ar que entra percorre uma imensidão farta de pouco espaço até conseguir chegar ao seu destino e de lá voltar, pesado, sujo, lento. A mão é pesada, não por peso mas por falta dela, por falta de força e, talvez, pelo frio que me invade. Não está frio lá fora. Está frio cá dentro. As rugas que se entrelaçam nas pequenas manchas castanhas da mão, estão salientes, não pulsantes, salientes, como rios invertidos com a sua base no topo da pela, revoltos, entrelaçados. As unhas são pálidas, cansadas de tanto terem feito pelos anos, a pequena luz da janela ao longe permite ver as quebras que lá estão, que cá ficam. Não têm brilho, não têm tamanho, têm sítio onde pousar, isso já é tanto, demasiado, para tanta, demasiada, gente. Pouso a cabeça na almofada, sugeringo um descanso, deixo-a ir, encontro a posição, rodo, empurro, puxo com ar o espaço, até chegar ao mínimo desconforto possível. Estou. Vou.

Vejo que te aproximas e te sentas no chão à beira do sofá. Olhas-me sem expressão,  olhos caiados de sal, ficando baço na expressão e hirto no corpo. Estás tenso. Não é hábito teu estares assim, tens um corpo fluido, das poucas vezes que te vi, que te encontrei numa esquina mais sombria e me olhaste com desprezo, não era hora de falarmos. Hoje estás mais próximo, vejo que queres falar e não consegues, que queres entir mas não podes, não és o protagonista deste momento, talvez sejas dos próximos, és de certeza dos próximos. Agarras a mão, não é aquele agarrar forte que vemos nos filmes, é um pousar da minha mão na tua, um enlace sem prender, que me deixa a mão fria, mas serena.

Se me perguntarem se quero ficar mais quente, uma manta talvez?, direi que não. Se quero mudar de sítio, as forças faltam e o desejo não assiste, hoje quero isto. 

Agora espero. O ar entra e sai, com mais força, mais esforçado, mais devagar, diminuindo as passadas como se de uma pauta se tratasse e o seu fim estivesse próximo, deixa ir, a música baixa, não acaba, eu não sei quando acaba.

Quando for hora, quando for a minha hora, quero ir assim, sem gente, só eu e tu que me olhas vazio, abraçando uma última vez, sentido um último suspiro. Quero ir assim, sem gente, só nós, acolhe-me e deixa-me sonhar a derradeira vez com campos secos e sobreiros solitários em planíncies de sol morno. Quero ir assim. E vou.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Dormir

 O carro continua a andar com destino a casa, passa pelos semáforos sem ver a cor, olho para as nuvens sem ligar à estrada que se encurva à nossa frente, mas ele concorre às leis da física e levemente segue o caminho do alcatrão, deixo-me ir, sem perceber muito bem o movimento das minhas mãos, o toque pesado, agarrado, sofrido, dos dedos ao volante de pele, que sua, que sangra, que sente tudo o que sinto por cada milímetro quadrado de toque. O banco sente o meu corpo enrijecer, cada músculo contrai, cada lágrima cai no assento que me sustenta, cada pingo leva consigo um pouco mais da minha alma que se corrói com o dia a dia destes dias. Vou inerte, gás químico sem expressão, carro rápido sem solução, contorna e vira, acelera e trava com soluços perdidos que ninguém percebe. As pessoas olham para aquele carro preto, não descontrolado, não rápido, apenas inconstante, não cumpre as regras da estrada mas igualmente ninguém ofende, anda apenas, sem grande preocupação de fora, ela está toda por dentro, abarançando, agarrando e suando o corpo que nele habita por enquanto, agarra-o e soluça, sentindo cada toque da sua pele, cada contorno da sua curva, cada milímetro da sua existência. Para quem não quer mais guiar, estranhamente continua seguindo, com medo mas sem grandes receios, sem grandes travões por aí igualmente, mas para quê parar?, mas para quê abrandar?, na verdade o pedal que controla a aceleração não é carregado pelo pé de quem se senta no guiador que gira sem vontade, para quê, pergunto, para quem?, por quem?, e nada se responde. Os olhos vidrados agora olham em frente, fecham, vão dormir, imaginar que não estão ali comigo, que estão longe, além, no meio do mar, numa solidão fresca, calma, natural, lá conseguem ver. A estrada continua, as curvas beijam as retas, intercedem-se sinais, peões e outros carros, mas ela vem outra vez, toca no ombro, relembra de onde estamos, olhos abrem, continuam vidrados, Não!, e fecham.

Estes olhos vão dormir, descansar, partir, imaginar, o carro continuará até algum sinal indicar que a viagem acabou, até alguma mão girar o que a terra ainda não abrandou.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Sei

 Sei que por todo este caminho de terra batida existirão despedidas, adeus, alguns olás e olhares cruzados, sei que a terra se colocará sem timidez entre os dedos calejados dos pés, que a brisa soará firme no meu rosto, percorrendo a minha tez com a calma e subtileza das ondas. Sei que cada ausência de árvores que fogem da fé deixará uma ausência no caminho e mais sobre pelas rochas que jazem nas bordas da estrada, esperando viver ao lado delas por toda a sua vida.Sei que cada cruva traz uma reta exígua, cintilante no seu percurso, versando pelo meu corpo como tu, deixando-me dizer que sabe do caminho, que desconhece o destino. Saberá do choro das ausência e da lágrima das lembranças, da volta do destino apagado nos olhos, do vazio inerte das mãos pálidas e sofridas, eternas desventuras do mundo esperando viver ao lado de si mesmas por todo este percurso.

Fico. Sei. Choro. Ausente. E volto à mesma volta que escrevo na terra, já aqui estive, aqui já não estou, eternamente saberei reconhecer que o saber é nulo, por toda a minha vida...

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Estrelas

 Se conseguisse abrir este corpo, da forma mais fria, com a faca mais cortante, olhasse por cada entranha e te procurasse, estarias nas veias que fazem o coração bater. A minha alma flui e voa pelo universo, percorrendo o espaço exíguo do vazio, pagando as minhas dívidas com o universo. Não sei de que é feito, sei que voa, estala no céu e não me sabe sentir, não se sabe sentir, sei que quer tentar voar e debruçar-se dos mares do céu mas não sabe sentir. Não significa que não sinta, que não se arrepie na pele perante o vazio do universo, que não se cale de medo ou fale de arrependimento. Falta-lhe o saber, saber de que é feita, o que significa o silêncio, o toque da voz, a ignorância infantil de dizer o que se quer.

Um dia saberá que é feita da poeira das estrelas, bastando para si saber isso. Tudo o resto é ruído do mundo esperando ter significado para quem o faz.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Frio

 Abro a janela para ver o pálido branco que a abraça, esgueirando-se do sol frio que se reflete na calçada. É janeiro, é frio e tenho apenas o silêncio da madeira do chão comigo, articulando nos pés gelados o bater das ondas das marés que fazemos ao deambular por esta espaço nu, selvagem e sem árvores maiores. A janela branca continua a salvar-me de ver a rua, oculta dela o meu semblante cansado e oco, é, neste momento um balão de oxigénio ao não permitir que mais ar entre neste espaço, neste corpo. Ao canto, a cama de ferros preta, destapada, nua, continua a agarrar-se às mesmas madeiras do chão que calco com os pés feridos do frio. A energia que tenho traz-me de volta a ela e ao seu colo. Nada do que lá fora se passa me chama, a não ser a branca janela que me salva de ver a rua e o meu próprio reflexo. Tapo o espelho do canto. Apago a pequena luz rebelde que se encedeia à beira do ferro preto da cama despida. O escuro abraça o silêncio e vem-me dar um ténue beijo no gesto, sabe que é a nossa hora.

O tempo é de frio, a janela é do gelo e eu, iceberg morto, continuo a rolar pelos tacos de madeira à procura da profundidade certa para me afundar. Escolho o taco mais frio, virado para a janela que não me reflete e sento-me despido de mim e dos outros. Quando a lança de frio que repousa no chão me agarra com força e uma última lágrima desce as colinas do meu rosto eu paro.

Aceito que o maior frio é o que trago comigo na almae todo o gelo do mundo se derrete ao mirá-lo.


terça-feira, 2 de agosto de 2022

Corpo

 Chego a casa, dispo-me, deixo as roupas largadas de suor frio pelos cantos mortos desta casa vazia, enche-se de mim com o muito vazio que trago dentro. Deixo passar a mão fria pelo braço, deslizando calmamente, sentindo cada espinho roçando, cada cicatriz marcada. Desliza, perdi-me, não sei qual o caminho até ao fim desta minha estrada. 

Deixei-me lá fora, no meio das multidões que não encaro, embora olhe, deixei-me lá fora no barulho da cidade e, cá dentro, sou eu, estou despedido dos outros. Passo pelo espelho e não o olho, só me vejo na distância longa entre o que sou e o que devia ser. 

Silêncio enche-me uma vez mais, a cabeça pesa, o corpo descai marcando a parede de pequenas gotas de solidão, perdi-me, e deixei-me ir com a gravidade, atingindo o chão num calmo silêncio, ensurdecedor a todo o restante que me abraça.

Aperto-me uma vez mais, agarro-me uma vez mais, atiro-me uma vez mais, arranho o ar uma vez mais.

Perdi-me lá fora. Aqui sou eu, perdido dos outros, a encontrar-me no silêncio do meu corpo, nos gritos da minha voz muda.