Parti o vidro, sim, quem esperava que alguém que se pauta pela calma da vida e a pureza das cosias fosse capaz de, num gesto rápido e nada trémulo, segurar o punho com a exactidão cirúrgica dos que padecem de experiência em actos violentos, e usurpar das leis da física atentando contra vidro neste único e simples movimento. Um arco exacto, exímio, descrevendo no fim um vector alinhado com o mundo, indo de encontro ao centro do espelho onde me via. Não me via, não podia ser eu aquele vegetal morto sem cor, uma mera sombra do que um dia tinha sido o sorrir, não sei o que se reflectia ali, só espero não ser eu.
Chegando ao êxtase do momento senti o quebrar, aquele barulho trémulo e balbuciante que se propaga num infinito contemplante, com a queda dos cacos de forma rápida e desgovernada vi nasce o sangue no meu punho, distante dos olhos e de todo o meu corpo. Não tinha corpo naquele momento, via-me na distância, ou não me via de todo.
Não sei que se passou, se tive neste instante toda a vida que tinha concentrada num gesto ou se nesse mesmo gesto perdi toda a vida que tinha até ali, continuava a sangrar, se a minha existência nesta noite se deixa definir pela loucura que me assombra e me faz vislumbrar os cacos no chão como um total esforço, um completo trabalho, ou apenas pelo sangue que misturado com as lágrimas beijando o chão aos salpicos, translúcidas nos pequenos espelhos que criei.
O resultado de partir a imagem é que agora, os meus dois olhos vermelhos se deslumbraram com mil cópias suas em todos os pequenos cantos sujos deste espaço. Não quero olhar, não me posso ver, hoje a noite é minha e a escuridão a voz com que falo.
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